segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

OS CABELOS DE DONA BRANCA




            Branca chegou à vida perdendo. A mãe não resistiu às complicações do parto. A bebezinha foi aparada e criada por Mãe-Obá, uma negra mandingueira, que foi sua mãe de leite e quem lhe deu o apelido.
Na pia batismal recebeu o nome de Ana Clara e teve confirmada a promessa da genitora agonizante, dedicando a Santa Ana, a avó, de Nosso Senhor Jesus Cristo, os cabelos que jamais poderiam ser cortados até que tivesse a primeira gravidez.
O pai era um estancieiro das antigas, com uma sesmaria de campos e aguadas a perder de vista, coalhada de gado. Gadaria orelhana cuidada por tantos agregados e posteiros.
A menina cresceu como xodó de todos, reinava absoluta entre a gurizada da estância. Fazia o que queria, desde subir em árvores pra ver ninhos de passarinho, caçar mulitas, montar arapucas, comer araçás, tomar banho nas sangas. Montava a cavalo com sela ou em pelo, ajudava a botar as vacas, apostava carreiras.
Aprendia em casa, com professores itinerantes, temporada de letras e aritmética, outra de música e artes plásticas. Aos doze anos, colégio de freiras no Alegrete, oito meses no internato e quatro em casa até se formar. Com dezoito, mesmo contra a vontade, seguiu o arranjo do pai e uniu-se ao capataz Porfírio Corrêa.
Porfírio era dessa qualidade de pessoa que pensa que é mais do que os outros, que se acha mais importante, que acredita ter mais direitos, e entende que a Lei só existe pra lhe favorecer sendo aplicada contra os seus inimigos.
 Para não parecer que casava por interesse declarou no dia das bodas:
- Ana Clara, minha esposa, a maior riqueza que eu tenho é a sua cabeleira. Desprezo todo o resto por ela, assim como te desprezarei no dia que a cortares.
A nubente, senhorita de boa índole, não viu afronta no dito, e dele, como todos, achou graça. Só Mãe-Obá percebeu na empáfia e no mau verso o prenúncio de uma desgraça.
Quando mais tarde tentou lhe explicar a promessa da mãe o Pofírio endureceu:
- Não vou atrás da conversa dessa negra fuxiqueira. A mulher casada obedece ao marido e estão desfeitas as promessas e remessas.
Queixou-se ao pai. Este deu razão ao marido. Além da reprimenda, Mãe-Obá foi expulsa da casa grande e mandada pra viver no povoado.
A jovem percebia que lhe botavam arreios, freio e boçal, mas não permitiria que lhe cravassem as esporas.
Meses depois, quando Mãe-Obá confirmou a gravidez, não correu para contar ao marido. Foi primeiro ao barbeiro e mandou tosar a melena. Abundantes cabelos negros, bem cuidados, com fios inteiriços que lhe chegavam além das nádegas, cortados na altura dos ombros. Ficava bem. Cumpriria a promessa no altar de Sant’Ana, e em pouco tempo teria de novo longas madeixas.
Manhã nublada de janeiro, chuva fina persistente após o temporal da noite. Sem camisa, pés descalços, calça arremangada até os joelhos, suspensórios, os piás aproveitavam pra correr de bicicleta, dar freadas na lama e derrapar nas poças d’água.
Notei quando atravessou a praça acompanhada da senhora negra e duas mulatinhas. Abriam e fechavam as sombrinhas e riam, um riso branco de copo-de-leite. Fiquei parado, olhando, um pé no chão, o outro no pedal pelo meio do quadro da bicicleta grande. Desde sempre eu atinava com a beleza das mulheres. E essa era formosa de parar o trânsito, mesmo que fosse só das bicicletas dos guris, naquele povoado modorrento.
Ficamos a dar voltas por perto, passando devagarzinho para apreciar o trabalho do cabeleireiro, e tecendo comentários sobre o inolvidável corte. Tenho nítida na memória a mulher a se olhar no espelho, sentindo o cabelo com as mãos, de um lado e outro e sorrindo do estranhamento. As gurias e a senhora em volta, e depois o barbeiro vindo na rua sacudir o lençol branco no qual ele enrolava as pessoas quando repicava os cabelos.
Então um cavalo surgiu a galope e deu uma esbarrada, jogando lama na gente. Porfírio apeou retinindo as esporas, adaga e Smith & Wesson na cintura.  Cuspindo marimbondos:
            - Quem esse cabelo aparou o resto há de cortar de graça e a navalha na cabeça passar.
O barbeiro quis dar pra trás, que isso era uma barbaridade que ele não fazia e coisa e tal... Mas o desvairado marido puxou o laço e amarrou a mulher na cadeira, até o pescoço, naquela esticadeira usada pra encostar a cabeça de quem se barbeava. Meteu um balaço no espelho e fez as mulheres correrem porta afora. A rua, a praça e até as casas ficaram desertas. Janelas e portas fecharam-se. Ninguém queria ser testemunha da desavença conjugal.
A jovem esposa, pálida, morta de medo e vergonha, tremia crispando os dedos nas guardas da cadeira. Sendo tosquiada, presa como um animal, o couro rústico do laço cortando-lhe a carne.
Sem pretender me quedei paralisado, assistindo a tragédia daquela mulher, até que o bruto a jogou para fora e aplicou-lhe um chute na barriga. Sozinha, humilhada, jogada na lama. Larguei a bicicleta e corri para ampará-la. O bandido montou e ficou com o cavalo escarvando em volta de nós. Eu gritei:
– Sai daqui seu covarde, deixa ela em paz.
O desgraçado baixou o relho nas minhas costas e se foi.
Então, por cima da ignomínia e da dor houve um constrangimento louco, de raiva e de lástima. Erguendo a mão do barro gritou buscando forças no âmago, clamando por justiça – tu vais pagar por isso seu maldito.
Segurou a minha mão e agradeceu me chamando de meu mosqueteiro. E ironizando pra ela mesma repetiu – mosqueteiro da rainha destronada. E chorou sentidamente, a cabeça no meu peito, os restos de espuma, o sangue dos cortes da navalha e as nossas lágrimas escorrendo até o chão.
O meu coraçãozinho infantil nunca tinha sentido tanta indignação. Acho que nem o dela. Era o nosso primeiro confronto com a inexorabilidade da violência, da crueldade, da maldade dos homens. Fiquei olhando calado para a mulher vilipendiada, magoada, ferida, como quem pede perdão por não conseguir defendê-la. A chuva refrescando o vergão da chibata no meu lombo.
De repente atinei pro rangido de um carroção. Vinha lento abrindo sulcos na estrada, trazido por duas juntas de bois de aspas grandes. Uma melopéia tão triste pelo ar parecia um arquejante soluço. Um guri de cabelos cor de fogo com as rédeas na mão, andando ao lado, os pés chapinhando no barro. Parou no meio da rua. Quatro mulheres desceram, envolveram Dona Branca com cuidado, deitaram-na num colchão sob o toldo arqueado, fecharam a tampa e prosseguiram na mesma marcha para fora da vila, os badulaques de cobre retinindo baixinho nos lados.
Três dias depois o moleque das ciganas passou a galope e jogou na porta da igreja caiada de branco, um pelego com um feto enrolado. Escrito com sangue no couro, “Todo o mal recaia sobre Porfírio Corrêa”. Furioso, o amaldiçoado juntou uma corja pra perseguir as ciganas, mas não encontraram. Durante um ano enviou espias nas quatro direções do Pampa. Nada. Tinham ganhado o mundo, e Dona Branca com elas.
Daí por diante a Vila definhou. Virou o lugarejo mais pobre e atrasado de todo o Rio Grande.  As intempéries açodaram as pragas sobre a terra que nem no Egito faraônico pelas mãos de Moisés. Temporais de granizo acabaram com as telhas e as plantações. A enchente destruiu as ruas, a praça e a antiga igreja. Depois, seca, nuvens de gafanhotos, carrapatos, mutucas. Os rebanhos finaram-se de fome e de moléstias. Os jovens foram-se. Ninguém casou, nem nascimentos se registraram, somente óbitos.
O pai pereceu de derrame no mesmo ano em que ela partiu. Porfírio padeceu as agruras da perda dos rebanhos, incêndio na casa grande, o abandono dos seus, o alcoolismo, a demência e por fim o tumor que o consumiu.
·      * * *
Campanha – região do Pampa no Estado do Rio Grande do Sul.
Orelhana – gado ou reses sem marca.
Posteiros – peões residentes nas divisas das estâncias.
Inolvidável – muito incomum, memorável.
Sanga – córrego, riacho.
Modorrento – lugar quieto, sem movimento.
Smith & Wesson – marca de revólver.
Melopéia – cantilena, toada.

Um comentário:

  1. Boa tarde sou de camaquã-rs por acaso tu é parente do padre lellis um dos fundadores da igreja de são joão batista de camaquã ?
    meu email sobrerodas@brturbo.com.br

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