sábado, 1 de janeiro de 2011

"Fala-se tanto da necessidade de deixar 
"um planeta melhor para os nossos filhos", 
e esquece-se da urgência de deixarmos 
"filhos melhores para o nosso planeta". 

História de aluno

MACALÉ

Macalé é um menino de 12 anos, muito preto, e com um sorriso de perfeitos dentes brancos. Mora em um barraco, com sua mãe, bem lá no alto da favela. Como a vista é privilegiada, o dono do morro resolveu montar o seu QG na casa de Macalé. Os armamentos, fuzis, pistolas, granadas, e munições, estão na sala. Há também uma mesa com balança, sacos plásticos, algumas colheres de tamanhos diversos, papel alumínio, papel de seda, todos recortados do mesmo tamanho e um rolo de fita durex. No quarto, debaixo da cama da mãe de Macalé, tem duas caixas, uma  cheia de dinheiro, e outra cheia de cocaína.
Todos os dias, às cinco horas da manhã o menino é chamado, no sofázinho no canto da sala onde dorme encolhido:
           -Macalé, acorda Macalé. Vai lá embaixo comprá pão pra nóis.
O menino está com sono e responde:
           -Não vou, vai você.
O soldado, um mulato de seus 16 anos, explica:
           -Nóis não pode descê. Tem PM no pé do morro. Vai na boa, Macalé, olha tem vintão aqui ó, e o troco é pra tu.
Vendo que vai sobrar algum pra ele, Macalé fala já levantando a cabeça:
           -Dá mais déiz pra eu traze o leite também.
O soldado ri, dando o dinheiro para o garoto:
           -Já é, Macalé. Vai logo!
Depois do café Macalé vê os bandidos conferindo os armamentos. O dono do morro, o único adulto, com seus 25 anos, sentado, fala para os seus seis gerentes, ali reunidos, indicando Macalé com o queixo:
           -Esse garoto sabe tudo de armamento, como monta e desmonta. Sabe limpá, carrega, agora só falta atirá.
           -Vamo dá um fuzil pra ele, diz o gerente principal.
           -Demorô! falam os outros em conjunto.
O dono do morro pega um FAL e bota nas mãos de Macalé:
           -Segura aí Macalé. Agora é teu. Vale sete mil.
Macalé, se transfigura. Fica apavorado:
           -Não, eu não quero, fala estendendo as mãos para devolver a arma.
           -Pode ficá, tu vai dá conta! fala o gerente, e o grupo sai pra rua.
Macalé,vai atrás, sorri de nervoso e mexe a cabeça de um lado pro outro:
           -Não, não quero. Eu quero ajuda a minha mãe. Não quero sê bandido, eu vô sê trabalhador.
O dono do morro segue andando, acompanhado por seus capangas e fala sem olhar pra trás.
           -Agora é teu moleque. Se perdê ele pra polícia, que seja sem nenhuma bala no carregador, se não tu paga ou morre, entendeu?
Macalé responde já chorando.
           -Eu não quero sê bandido. Não vou atirá. Vou deixá essa arma aqui. Faz menção de que vai por o fuzil no chão.
O gerente fala dando risada:
           -Que moleque peidão! Todos riem de Macalé.
O chefe faz um sinal com a cabeça e todos se calam. Aí ele fala, pegando o fuzil de volta das mãos do menino:
           -Tá certo, tu vai sê trabalhador. Mas não quero te vê metido em encrenca, falô?
Macalé respira aliviado, e abre seu imenso sorriso, dizendo:
           -Já é! E  sai correndo, pegar sua mochila pra ir para a escola.
Os bandidos se viram e seguem o seu caminho comentando baixinho.

MONTEVIDEO

Cheguei a Montevideo em um vôo da madrugada de 4 de maio de 2004. Sonolento e cansado, não pude aproveitar o trajeto do aeroporto ao hotel, no bairro de Três Cruces.
De manhã, logo cedo, já estava indo para a Cidade Velha, como chamam a ponta da península onde os espanhóis fundaram a cidadela, no século XVIII. Como toda a cidade espanhola, parece um tabuleiro de xadrez. As ruas e praças seguem um desenho geométrico de linhas retas, bem diferente das cidades portuguesas, que acompanham o relevo e o caminho das mulas.

Os carros e os velhos de Montevideo

Os carros e os velhos de Montevideo

Os carros de Montevideo são diferentes. Não porque sejam de outras marcas, pois há de tudo o que temos no Brasil. A diferença está no jeito que eles dão no carro.
Os ônibus tem uma pintura, umas propagandas, um monte de coisas escritas, buzinas de corneta, pinduricalhos nos vidros, luzes, calotas especiais.
Descobri que existem várias cooperativas, e os motoristas são proprietários, por isso, dão o seu toque pessoal, assim como os caminhoneiros o fazem em seus veículos. Alguns são bem antigos, como os ônibus elétricos de três portas, adaptados para diesel, e aquelas Mercedes tipo caminhonete, com o motor na frente.
Os automóveis também têm um toque diferente, principalmente os mais antigos, que sofrem adaptações. É comum a gente cruzar na rua com Ford bigode, o modelo T de 1929, tipo sedã, calhambeque ou caminhãozinho. Há também Mercedes, Renault, e aqueles grandões americanos. Carros de todas as épocas, funcionando muito bem.Chamam a atenção aqueles minúsculos Renault, chamados de patinho feio. Hoje vi um amarelinho. Era o próprio patinho. Fiquei rindo da imagem.
Em pleno centro de Montevideo se vêem carroças. Há muitas fazendo a coleta de lixo reciclável. Os cavalos são enfeitados, os arreios têm muitos pinduricalhos, e as carroças são cheias de estilo, com placas, cordas, flâmulas, bandeiras, enfim, cada uma mais incrementada do que a outra, assim como os carros e ônibus.
E há lojas de peças, lanternas e faróis para todos esses carros. Parece que as coisas antigas são sempre renovadas, e estão no uso. Firmes no cotidiano.
Assim penso que há um conforto para os velhos uruguaios, que não perdem as referências materiais da história de suas vidas. Pode ser que alguns mais idosos sintam saudade das diligências. Eu que nem sou tão idoso cheguei a vê-las nos anos 70, lá em Rio Branco, na fronteira com Jaguarão, onde passava as férias com meu avô.
Penso que deve haver um conforto em saber que recebendo manutenção e sendo bem usado, a gente convive bem com o novo e tecnologicamente avançado.
E não são só coisas materiais, há também os valores. Percebi que palavras como honra, honestidade, amizade e lealdade ainda estão em voga.
Os velhos uruguaios são muito elegantes, muito dignos. Os que têm posses se engravatam. Há os que usam aquelas tipo borboleta, casacos com colete, ternos muito bem cortados, chapéus de feltro ou bonés de tweede. Fiquei admirando as roupas de casemira feitas por alfaiates, os quais se pode ver trabalhando pelas vitrines de oficinas. E nos senhores, o seu nobre corte.
Vi os velhos de Montevideo tomando seu café, em conversas animadas.
Os velhos parecem mais alegres do que os adultos, ou mais felizes. Talvez ainda não lhes cortaram as aposentadorias.
Os cafés da cidade velha são muito interessantes. Alguns ainda mantém a decoração centenária. Gostei muito do Café Brasilero e da Confeitaria Missiones.
Gostaria de ter fome e nervos para tomar dezenas de cafés por dia, saboreando esses ambientes e a companhia dos veteranos. Queria aprender sobre suas vidas, seus trabalhos, seus amores, seus projetos e pensamentos.
Acho que estou meio apaixonado pela alma uruguaia.

Os estudantes de Montevideo

Os estudantes de Montevideo

O Uruguai é um país de gente bem educada. Apenas 4% da população não sabe ler.
Há boas escolas públicas. As crianças usam um avental branco de mangas compridas e botões nas mangas, acinturado como um vestido, que lhes vai até a canela, fechado na frente, com gola enorme, tipo babado e um enorme laço de fita comprida e larga, de cor azul marinho, como se fosse uma gravata, mas que vive desatado ou caindo pela cintura. Creio que há muitas crianças pobres e por isso mal arrumadas, não como deveria ser. Em Montevideo de vez em quando se cruza com um grupo, tangido por uma professora, indo a visitar algum museus. As crianças são ordeiras. Não fazem algazarra. Os alunos de uma escola particular passaram por mim, bem arrumados, com camisas azuis, gravatas e blusa azul marinho. Muito elegantes, porém mais tristes. Falavam baixo. Tinham caras de abandonados.
A tarde havia uma manifestação de estudantes de liceo, o ensino médio. Estes, adolecentes típicos, pela rebeldia e irreverência. Contudo, nunca vi uma baderna tão organizada. Havia adultos também, professores e pais, mas só os jovens comandavam.
Saíram as ruas com cabelos pintados, faixas, cartazes, bandeiras dos times de futebol, sombrinhas e guarda-chuvas. Ao chegarem a Avenida 18 de Julho, um grupo de batedores, de motonetas e bicicletas, empunhando enormes bandeiras, fechou o trânsito.
A polícia assistia sem participar, nem mesmo do controle do tráfego. Tirei fotos e entrevistei alguns, para entender o que se passava. Estavam tão agitados, eufóricos. Protestavam contra a redução nas verbas para a educação.
Novidade, não é?
Bom, pelo menos aqui eles protestam.

O Louco de Montevideo

O  Louco de Montevideo

Com o dia mais bonito, mais sol e menos frio, pude conhecer outras partes da cidade, que se me afigura mais interessante. Ando pelas ruas da cidade velha, tiro fotos e converso com as pessoas. Aos poucos vou me inteirando da vida no Uruguay. Coitados, como estão ferrados com os políticos. E eles pensam que o Lula é um grande presidente, uh! Os problemas são os mesmos, mesmíssimos: a mesma submissão ao FMI, a desvalorização do trabalho, a corrupção e a especulação financeira.
Sabe aquelas cenas de rua que fazem as delícias de um flaneur? Isso é em francês o termo elegante para desocupado passeando. Pois a tal cena foi a de um senhor desequilibrado, muito elegante, de terno azul marinho, gravata, sapatos bons, cachecol chique no pescoço e chapéu de feltro. Começou o surto bem na minha frente numa rua de pedestres, com voz tronitoante:
           - hay una pregunta que podemos hacernos, disse ele pausadamente, parando com uma mão na cintura e a outra num gesto largo. Algum gaiato entre ambulantes e transeuntes replicou:
           - solo una, no, hay mutias!
Ignorando a intervenção continuou, com sua voz empostada, como um político na tribuna do senado:
           - donde está el tesoro de Uruguay?
Aí, então, as respostas foram mais jocosas, do tipo comigo é que não está. As pessoas, mesmo passando, interagiam com o louco que discursava para uma platéia imaginária.
Como que saboreando o efeito de sua bombástica pergunta, adiantou-se alguns passos, e como se olhasse nos olhos de algum adversário, disparou com o dedo em riste:
           - usted lo a sacado, su nazista. E avançando dirigiu-se a outros, yo lo se que ustedes sacaran milliones de dólares del banco de la Republica. Sacaram oro, milliares de barritas de oro. Ladrones.
A voz possante ecoava acusatória. Era uma voz denunciando ao vento. 

Colônia do Sacramento

Colônia do Sacramento

Essa colônia foi fundada pelos portugueses na época da União Ibérica, de
1580 a 1640, quando Portugal e suas colônias estavam sendo governados pelo
rei de Espanha Felipe II. Quando os portugueses tiveram um novo rei, os
espanhóis tentaram desalojar os portugueses de lá, mas eles fincaram pé, e
estabeleceu-se que eles podiam ficar. Contudo, em 1750, pelo tratado de
Madri, os portugueses cederam a Sacramento aos espanhóis em troca dos Sete
Povos das Missões e otras cositas, ou seja, metade do Rio Grande, Santa
Catarina e Paraná. A cidadela foi sendo remodelada pelos espanhóis,
adquirindo uma configuração mista. Um projeto parecendo Parati, com
edificações espanholas, ou base portuguesa e teto castelhano. Uma coisa.
Também não foi tão conservada e sofreu mutações ao longo do tempo. No
entanto, ainda restam um portão e uma face das muralhas, com alguns canhões
setecentistas.
A cidade em volta é bem típica portenha, o rio da Prata tem aquela coloração
marrom, e as praias parecem as da lagoa dos patos. Há uma linha de barcos de
passageiros para Buenos Aires, daqueles que levam ônibus, caminhões  e tem
até um freeshopping dentro. Buenos Aires está cerca de 50 kms.
A estrada para colônia do Sacramento é muito boa e tem uns retões
arborizados, dos dois lados, às vezes de eucalipto e outras de palmeira
yatay. Nunca tinha visto uma estrada como essa, com palmeiras cerrando fila
dos dois lados, cerca de vinte metros uma da outra, por dezenas de
quilômetros. Pena que estão duplicando, e fazendo autopista. Para fazer isso
tem que arrancar as árvores. Os campos são parecidos com os do Rio Grande,
como aqueles de Camaquã.